José Oliveira, 22-1-2021
Actualmente, grupos de intelectuais marxistas e sindicalistas da velha escola continuam colados e submissos às antigas concepções e categorias que marcavam as relações laborais no séc. XIX e que Marx tão bem escalpelizou nas suas obras. Essa estagnação conceptual de base tem distraído essas pessoas, algumas bem mediatizadas como Raquel Varela por exemplo, de dar a devida atenção às profundas alterações nas relações laborais que têm vindo a ser continuamente reelaboradas pelo sistema capitalista.
O conjunto dessas modificações sempre em curso, correndo bem adiante da trôpega regulamentação laboral/empresarial, visa uma série de objectivos que sempre fizeram parte da panóplia que o sistema procurou prosseguir na sua interminável senda da maximização do lucro e redução dos custos. Desse caminho faz necessariamente parte a acelerada financeirização da economia, modo de obter encaixes elevados, baixos custos e sem os inconvenientes e os entraves da produção, visto ser uma actividade essencialmente parasitária.
A fuga aos compromissos fiscais é uma outra estrada prosseguida a todo o vapor, bem como a criação generalizada de empresas sem funcionários, para servir apenas de veículos de encaminhamento dos fluxos e operações financeiras.
Naturalmente que os custos laborais são sempre a parte mais apetecível, por envolverem o lado mais fraco da relação empregador-empregado. Mas antes de prosseguirmos, é essencial estabelecer uma distinção crucial de partida.
O pecado original desses pensadores começa precisamente no facto de procurarem generalizar as categorias e descrições de Marx, esquecendo que o trabalho do grande mestre se foca quase por completo no capitalismo industrial do séc. XIX, então dominante, ou seja, o capitalismo da produção de bens.
Actualmente, a produção de bens ocupa uma parcela bastante reduzida no contexto da economia global (menos de 5%), de modo que os ensinamentos de Marx, embora válidos, só são aplicáveis com propriedade a esse mesmo nicho, ponto sobre o qual incide também grande parte da legislação e regulamentação laboral e empresarial. Isto significa igualmente que o percurso do capitalismo se veio a fixar no objectivo de ultrapassar, contornar e até esmagar progressivamente todos ou quase todos os entraves de ordem legal e social à sua incansável expansão global (superar os limites, como disse Marx).
Assim sendo, quando os pensadores actuais referem a “centralidade do trabalho” para a definição das políticas socio-laborais, estão de facto a tomar a parte pelo todo, e uma parte cada vez mais ínfima. Pior ainda, tal atitude actua como cortina, impedindo-as de ver e analisar com o devido detalhe as reais condições de trabalho impostas pelo novo capitalismo dos serviços, do digital e da precarização/terceirização acelerada.
Basta lançarmos um rápido olhar para as maiores empresas do mundo, os chamados 4 grandes (Big Four), Amazon, Apple, Google e Microsoft, para constatarmos que o seu gigantismo brutal e a velocidade do seu crescimento deixam o 5º classificado, a Samsung a grande distância.
O valor real do Big Four hierarquiza-se em 2021 como segue:
. Apple $ 323 B
. Amazon $ 201 B
. Mcrosoft $ 166 B
. Google $ 165 B
. Samsung $62 B
Se nos perguntarmos o que produzem essas empresas, a resposta é “nada”. Apesar de movimentarem quantias de valor gigantescas, a sua própria força de trabalho é comparativamente reduzida, como muito reduzida é a comparticipação do factor trabalho na formação de toda essa riqueza.
Pior ainda, o cerne do funcionamento dessas e outras empresas similares assenta principalmente na intermediação de serviços, o que quer dizer que visam extrair mais-valor ao funcionamento das outras empresas mais pequenas, parasitando-as à escala global. Tal é ainda acentuado pelo caminho abertamente monopolista que têm imprimido à sua actividade, obrigando o mercado a aceitar ou a desistir. Como estamos longe do liberalismo dito de mercado-livre!
Reparemos ainda que Mark Zuckerberg, um dos mais ricos do mundo, como outros grandes empreendedores, terá com certeza usado “trabalho” em sentido usual, aquando da formação do Facebook, mas uma vez lançada a actividade, ela alimenta-se a si própria e dispensa quase todo o trabalho, para além da gestão dos fluxos. Tal significa que o factor trabalho tende cada vez mais para zero, à medida que esses gigantes vão crescendo a um ritmo alucinante, agora potenciado ainda mais pela pandemia.
Se olharmos agora para a rápida automação – a Amazon inaugurou a 1ª loja sem funcionários e os camiões autónomos já circulam em várias zonas do mundo – vemos que o factor trabalho também actua como primeiro motor ou como pontapé de saída, mas depois desaparece quase por completo na actividade normal. Os próprios bancos, por exemplo, já passaram ao cliente grande parte do trabalho que antes era feito pelos funcionários. Os especialistas calculam que mais de metade dos actuais empregos vão desaparecer nas próximas duas ou três décadas. Ou seja, o factor trabalho tomado no sentido tradicional tende a reduzir-se ainda mais.
Por outro lado, constatamos que o capitalismo dos serviços é dos mais preferidos hoje, por realizar a chamada “circulação da mercadoria” de modo quase instantâneo, apressando assim o retorno do capital, ao contrário do mecanismo da produção, muito mais complexo e demorado nesse retorno.
Cumpre agora voltarmo-nos para um outro ramo crescente do capitalismo actual, o das empresas de entrega/venda como Uber e outras análogas, para analisar as suas relações laborais.
Representam um caso limite em termos de exploração da força de trabalho, na medida até em que esta deixa de o ser do ponto de vista legal. Os trabalhadores deixam de o ser, passando à situação de meros colaboradores ou vendedores dos seus serviços à empresa, a qual não mantém com eles qualquer espécie de vínculo oficial. A empresa limita-se a comprar-lhes os serviços como quem vai ao mercado e compra batatas. Compra se quer, quando quer, na quantidade que quer e a quem quer.
É a total coisificação do trabalho e da pessoa, meros objectos à deriva na “mão invisível” das forças do mercado.
Um outro processo que permite às empresas desvincularem-se dos trabalhadores é a terceirização onde se inclui o recurso às firmas ditas de trabalho temporário, processo ínvio para os intermediários se apropriarem de uma parte considerável do salário dos trabalhadores subcontratados.
Esta situação significa que a empresa se desliga por completo de toda a legislação laboral e de todas as obrigações entre empregador e empregado, pois, de facto, esses vendedores eventuais nada têm a ver com a empresa, são apenas batatas. Daqui decorrem outras consequências não menos gravosas. Visto o colaborador não pertencer nem ter nada a ver com a empresa, esta não tem de lhe fornecer quaisquer meios de trabalho, externalizando deste modo custos que vão recair integralmente sobre os referidos “colaboradores”. Assim, os entregadores são obrigados a pagar do seu bolso as motas ou carros, GPS, seguros, malas, etc. e a arcar com todas as despesas de deslocação e manutenção desses meios de trabalho ou acidentes em serviço. A segurança social para eles também não existe, a não ser que a paguem integralmente, não há horário de trabalho, condições, feriados, baixa por doença, subsídio de desemprego, reforma, etc. São eufemisticamente apelidados de patrões de si próprios ou até empresários em nome individual, como se estivessem em posição de decidir seja o que for. Mais ainda, tal como no mercado das batatas, os vendedores têm de competir uns com os outros para apresentar os melhores preços, a melhor qualidade e quantidade, numa corrida permanente de todos contra todos, para benefício exclusivo da empresa. O sistema afadiga-se em convencer as pessoas de que a melhor solução é transformar os cidadãos em pequenos capitalistas, sem nunca referir que a quase totalidade das start-ups cai na falência um ano ou dois após o início.
Não deixa de ser elucidativo compararmos este tipo de relações com o que sucedia nas antigas economias esclavagistas do séc. XVIII e XIX. Nestas, o senhor adquiria o escravo como quem adquire uma mula ou um burro, ou seja, um animal de trabalho. Na Antiguidade, o código de Hamurabi já identificava um escravo a um burro, portanto, desprovido de dignidade humana. De igual modo, os donos de plantações defendiam que o escravo não era um ser humano por “não ter alma”.
O senhor adquiria o escravo para sempre, ficando igualmente dono da sua prole, como o dono dos burros fica com as respectivas crias. Adicionalmente, o senhor obrigava-se a fornecer ao escravo ou ao burro o sustento e o abrigo, bem como todos os instrumentos de trabalho. Temos de reconhecer que este sistema de organização da força laboral tinha a virtude de criar uma certa estabilidade em todos os sentidos, tanto para o senhor como para o escravo, a não ser que este se rebelasse.
Comparativamente, os escravizados de hoje encontram-se numa situação francamente pior devido à sua total precarização a todos os níveis e em absoluta dependência da discrição empresarial. Se alguém tem a veleidade de tentar seja o que for não do agrado do patrão, este nem precisa de fazer nada. Limita-se a não lhe dar trabalho ou a não adquirir os seus serviços.
A questão sindical também tem de ser aqui colocada, pois é sabido que, devido a todas as condições indicadas, a sindicalização tem vindo a cair acentuadamente, não só devido a graves limitações legais em países como os EUA, Canadá, Austrália, China, etc. como igualmente por causa da crescente atomização e isolamento dos próprios trabalhadores.
Quer as situações descritas quer também no âmbito das famosas start-ups, tão do agrado dos gurus do novo capitalismo, os trabalhadores, colaboradores ou vendedores encontram-se quase completamente isolados, confinados e esmagados por condições e horários de trabalho exaustivos (aqueles que ainda têm horários), de modo que objectivamente não existe a mínima disponibilidade para se associarem. Muitas das actuais empresas, como as 4 grandes já referidas, implantaram até meios sofisticados de sobrevigilância para impedir quem quer que se atreva de desenvolver ou sequer conversar sobre sindicalismo, por exemplo, ao mesmo tempo que plataformas como o Facebook intensificam o cerco e a censura descarada a muitas organizações progressistas ou de esquerda.
Significativamente, todos as principais estruturas sindicais concentram o seu campo de acção predominantemente sobre empresas produtoras de bens e serviços, de preferência públicas, recusando encarar de frente a problemática das novas empresas baseadas em entregadores/vendedores, call-centres, etc. e em geral as que usam a mão-de-obra mais precarizada e/ou terceirizada. Ou seja, no seu imobilismo atávico e burocratizado, continuam a privilegiar as antigas relações laborais da economia de produção.
Como se sabe, uma outra via usada pelo sistema para se eximir às antigas responsabilidades, tem sido a crescente onda de deslocalização a leste e a sul, fazendo jus à total mobilidade do capital face à relativa imobilidade do trabalho, procurando sempre zonas mais desreguladas e de taxação mais benigna. Grandes empresas que deslocalizaram para a China, já decidiram ir para o México ou para a Nigéria, por exemplo, na constante procura de ambientes fiscais mais favoráveis e de mão-de-obra mais dócil, flexível e barata.
Com o mesmo objectivo proliferam os paraísos fiscais, verdadeiros santuários onde convergem as grandes fortunas e onde os mais ricos conseguem eximir-se a todas as suas responsabilidades sociais, ficando ao abrigo das demandas judiciais.
Outra parte integrante da citada estratégia de superação dos limites, consiste na proliferação de tratados internacionais ditos de livre-comércio (hoje mais de 3500 em todo o mundo), visando libertar as grandes empresas de todos os entraves colocados pelos estados-nação, numa lógica claramente supra-nacional, intensificando a concorrência e esmagando normas laborais, ambientais e de saúde pública.
Conscientes contudo, da instabilidade estrutural onde se movem as praças financeiras e das artificiais subidas dos índices bolsistas, sempre a resvalar para um próximo melt-down, um punhado de ricos-homens americanos onde se integra naturalmente Bill Gates, tem vindo a lançar-se numa desenfreada corrida para a aquisição de vastas superfícies de terras, quer agrícolas quer florestais (milhões de ha), como a dizer que o colapso da economia da nota verde estará próximo e que o investimento em latifúndios sempre é mais estável que a aposta em títulos.
A actual situação aponta assim para a necessidade acrescida de um profundo combate à corrupção, não apenas àquela que funciona à margem da lei, mas sobretudo a que tem lugar dentro da própria lei, a chamada corrupção legal ou legalizada, enquanto as esquerdas institucionais se vão remetendo para posicionamentos cada vez mais defensivos, limitando as suas críticas a aspectos pontuais e injustos do sistema, mas não ao próprio sistema como um todo.